terça-feira, 17 de março de 2009

Mea culpa, minha tão grande culpa

Depois de ler a Divina Comédia, escrevi um texto, seria a confissão de uma alma a Dante, mas não sei em que círculo eu a colocaria:

Sim, confesso a todos, disseco-me à presença de todos. Aqui onde estou não há tempo para mesuras. Como vêem, no purgatório não consegui locação e essa névoa pútrida de gosto tão acre é agora a minha morada.
Vou lhes desvelar o manto de minhas culpas, mas cuidem de se lembrar que em vida só fiz dizer a verdade, que nunca poupei ninguém da sua mais fina e fria lâmina.
Minhas faltas não foram tantas assim. De todos os pecados de que me acusam, de um deles, certamente, não dou conta: nunca chafurdei nas mesas atrás de gordurosos nacos de carne, nunca gastei horas de meu dia entupindo-me de grossos chocolates. Ojeriza-me essa deseducação à mesa, é preciso um corpo são para melhor poder pensar. Vejam, trago-lhes estes olhos encovados, esta pele pálida e seca, os dedos sem carne, ressequidos.
Também não posso dizer que fui dama voluptuosa, que se entregava às querências da carne. Não nego que me divertia em deixar à mostra meus pés pequenos e bem cuidados, tampouco escondo que mantinha os lábios sempre úmidos, a boca entraberta.Vez ou outra um botão sem querer escapulia, deixando a minha nuca à mostra. À preguiça tão pouco me rendia que,antes de o sol nascer, já me punha de joelhos, o terço nas mãos. Não havia na minha rua, na minha cidade, alguém com tanta disposição para a ordem. Antes das sete, a casa jazia, limpa.
Filhos não tive.
Se eu não dividia o que era meu, isso não significa que era avara, porque na verdade não me interessava acumular coisas assim por tê-las. Eu as possuía com gosto porque sabia que jamais haveriam de segurá=las nas mãos. Além disso, o que fazer quando não há uma única alma que mereça nossos obséquios. Das vizinhas não suportava o hálito, mistura de esterco e naftalina. Os serviçais, todos, me constrangiam com o porte grosseiro, os cabelos sempre cheirando a alho. Deixar que comessem minhas suculentas cerejas, os lábios para sempre tingidos de vermelho? Preferia vê-las apodrecendo no quintal.
Sim, admito, a inveja me sustentava. Horas eram gastas em desejar algo que não me pertencia. E desejava tanto e com tanta gana que, mais cedo ou mais tarde, homem, mulher ou criança esquecia, abandonava, perdia seu amado objeto. Não os tenho aqui comigo, é bem verdade, mas nada paga o gosto de ver alguém restar menor, desfalcado daquilo que sequer sabia poder amar.
Se a soberba é minha mestra? Por que não? Nunca me neguei a dizer a verdade e olha que aqui onde estou, mentir é quase questão de sobrevivência. Pela verdade, perpetrei valores e costumes. No entanto, só fiz valer a minha vontade, a minha verdade era a verdade de todos. Naquele buraco, ninguém comia em mais fina mesa, ninguém vestia com mais elegência, ninguém falava tão bom latim, ninguém conhecia tão bem as leis divinas, ninguém era tão cheia de virtudes como eu.
Se me querem aqui, que assim seja. Mas não esperem complacência, não pensem que irei ranger os dentes, morder as minhas carnes, pedir clemência. O que está feito está feito. Assim seja!
Tania Cosci


P.s.: Quanto a mim, tenho o meu próprio Dante, o amigo, Dante Velloni.

domingo, 15 de março de 2009

Um dos textos lidos no último sarau chamou muito a atenção, pois além da fina ironia, é pungente, delicioso de ler/ver/ouvir. E o melhor, o autor é daqui de pertinho, Teo Lopes Andrade:


dona mirdezinha


É uma “véinha” “umirde” – diziam outras velhinhas humildes em relação àquela simpática senhorinha que perambulava pela praça sempre ao meio-dia, nunca cedo ou de tardezinha, porque ela ficava acanhada em exibir uma sombra muito grande.

Quando era convidada para um almoço, ela se encolhia na cadeira, sem coragem para se servir, os olhinhos atarracados ao chão por causa do medo de esbarrarem na comida sem serem convidados.

- A senhora quer arroz, dona Mirdezinha?

- Dois grãos, por favor.

- E frango?

- Pode ser um ossinho.

- Feijão, dona Mirdezinha?

- Só um caldinho, filho.

A voz, milimétrica, dificilmente percorria a longa distância até a cabeceira da mesa. Às vezes, o dono da casa pedia para alguém reforçar suas palavrinhas:

- E então, o que ela disse? Quer refrigerante?

- Meio dedo.

Agora mesmo, lá vai ela, andando tão devagar que parece não sair do lugar, escondendo toda a sua sombra sob as chinelinhas trinta e três. De vez em quando, acena para alguém um cumprimento que cabe dentro de um centímetro. Dona Mirdezinha é professora de gestos em miniatura.

Atenção! Ela acaba de se assustar com uma musiquinha inesperada. Remexe na bolsa e encontra um pequenino celular entre duas moedinhas de um centavo. Fala, escuta, parece que a notícia é boa. Pelo jeito, acabaram as reformas na sua casa de praia.

- Espera aí! Casa de praia, dona Mirdezinha?

- Não é não, filho. Dois “tijolinho” só, num quadradinho de areia...

(do livro acaba em romã – teo lopes andrade – pag. 79 – Ribeirão gráfica editores - rge@francanet.com.br)

Não é ótimo? Melhor ainda com a leitura dramatizada feita pela Tina. Andei até pensando, a gente sempre se depara com uma dona mirdezinha. Enquanto sentimos pena...

segunda-feira, 2 de março de 2009

inferno


Há boas e belas traduções da Divina Comédia, é óbvio que em versos chegamos mais perto da obra original, mas para quem quer se aventurar numa primeira leitura, a versão em prosa é muito legal. Uma das passagens que considero mais belas é aquela em o poeta pede a Francesca de Rimini que conte a sua história, aqui prefiro os versos:

“Onde, a paz desejando, o Pado ingente

Com seus vassalos para o mar descende,
99 A terra, em que hei nascido, está jacente.

“Amor, que os corações súbito prende,
Este inflamou por minha formosura,
102 Que roubaram-me: o modo inda me ofende.

“Amor, em paga exige igual ternura,
Tomou por ele em tal prazer meu peito,
105 Que, bem o vês, eterno me perdura.

“Amor nos igualou da morte o efeito:
A quem no-la causou, Caína, esperas”.
108 Após tais vozes foi silêncio feito.

Daquelas almas as angústias feras
Em meditar amargo a fronte inclino
111 Té que o Mestre exclamou: “Que consideras?”

Quando pude, falei: “Cruel destino!

Que doce cogitar! Que meigo encanto,
114 Precederam do par o fim maligno!” —

Aos dois voltei-me e disse-lhes, entanto:
“Teus martírios, Francesca, me angustiam,
117 Movem-me o triste, compassivo pranto.

“Quando os doces suspiros só se ouviam,
Como, em que Amor mostrar-vos há querido
120 Os desejos, que ainda se escondiam?” —

— “Não há” — disse — “tormento mais dorido
Que recordar o tempo venturoso
123 Na desgraça. Teu Mestre o tem sentido.

“Mas porque de saber és desejoso,
Como nasceu a flor do nosso afeto,
126 Direi chorando o lance lastimoso.

“Por passatempo eu lia e o meu dileto
De Lanceloto extremos namorados;
129 Éramos sós, de coração quieto.

“Nossos olhos, por vezes encontrados,
Cessam de ler; ao gesto a cor mudara.
132 Um ponto só deu causa aos nossos fados.

“Ao lermos que nos lábios osculara
O desejado riso, o heróico amante,
135 Este, que mais de mim se não separa,

“A boca me beijou todo tremante,
De Galeotto fez o autor e o escrito.
138 Em ler não fomos nesse dia avante”.

E lindo não é mesmo? Que jeito delicado, inteligente, doce de dizer que passaram a se comportar como amantes, que passaram da leitura à cama: "Em ler não fomos nesse dia avante”.