domingo, 28 de setembro de 2008

Alices


Quando li Alice no país das maravilhas pela primeira vez, eu devia ter uns 12 anos, não mais que isso. Na pequena cidade onde eu vivia, a biblioteca funcionava nos horários mais malucos: das 10 às 12 horas na segunda-feira, fechava às terças, reabria a 13h na quarta, fechava na hora do almoço da quinta e na sexta só funcionava até as 16h. Ou seja, sincronizar o nosso tempo com o do funcionamento da biblioteca era algo só possível com a ajuda da física quântica! Pois bem, num desses dias em que Deus estava jogando dados, encontrei a porta aberta e me enfiei lá dentro, lá no fundo, onde ficavam os poucos e rotos livros infantis, bem ao lado de uns livros curiosíssimos de medicina (que a bibliotecária nunca deixava a gente pegar!). Lá, bem escondido, encontrei a Alice. Achei absurdo a história do coelho, se fosse um tatu tudo bem, mas coelho? Enfim, comecei a ler o livro ali mesmo e terminei-o em casa. Eu entendi a pobre Alice e até fiquei com pena dela. Eu também estava crescendo e também sentia que já não cabia dentro de mim mesma. Fui reler Alice anos depois, já na faculdade de letras. Descobri-me ainda encantada com a aquela leitura e de novo me solidarizei com a pobre Alice. Vinte anos mais tarde, eis que o livro retorna às minhas mãos. Agora o leio para minha filha, de oito anos, que sempre viveu na cidade, nunca viu um coelho que não fosse de petshop e adora os gatos persas da tia, que não sorriem para ela, mas fazem bela figura. Por incrível que pareça, continuo com aquela sensação de não caber dentro de mim. Afinal, estarei eu ficando obesa ou os espaços é que estão diminuindo? Alice, me dá um pedacinho daquele bolo?

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Sendo




Nando Araujo
Filosofia / musicologia


Não sou filósofo, mas penso. E, pelo pensar desmedido, contemplo suas almas. Assim, filosofando, rio dos que simploriamente indagam se a minha fala é filosófica. Do riso emerge em mim o filósofo. Não sou músico, mas entre instrumentos ditos musicais, produzo descabidas melodias, faço-me músico. Não sou professor, mas aprendendo a aprender, ensino. Ensinando, atribuem a mim tal papel existencial. Aceito, leciono. Não sou pai, mas ao exercer a terapêutica da paternidade, auto-imputada, vejo em mim o pai que sempre fui. Não sou marido, mas amando a minha mulher me transformo em seu amante. Amo-a como um homem deve amar, e nada mais. Não sou filho, mas nascido do ventre da minha mãe, me concebo como sua cria. Não sou poeta, mas, cotidianamente, olho com os olhos da insanidade para escapulir da normal vida prosaica que tenta igualar os desiguais por essência. Assim, vivo, poetando vivo. Não sou virtuoso, mas reconhecendo e aceitando as minhas imperfeições, aconchego-me junto a excelência humana. A virtude? Uma força que faz algo excelente. Qual é a excelência do homem? Não sou político, pois ao reconhecer o papel da Polis não me confundo e tampouco desejo sobrepujar-me a ela. Percebo-me, dessa forma, como político. Não sou sábio, tampouco tolo, pois reconheço o tamanho da minha ignorância. E assim não ignoro a minha porção carente que faz da Philía a minha Sophía. Não sou o que tentaram fazer de mim. Desculpem-me, não resultou correto! Não sou o que tentei fazer de mim; um engano. Assim, expurgo tais idéias adventícias. E ao desnudar-me delas, quem surgirá? Não sou corajoso, mas sem medo enfrento o meu pior inimigo, eu mesmo. E assim morro por mim, para que eu possa viver. E, ao escolher uma vida, morro para tantas outras. Não sou homem, tampouco mulher. Não sou Santo, tampouco Daimon. Não sou nada, tampouco tudo. Não sou o seu inferno, pois o meu olhar transcende a sua imagem que a mim chega, mas também não sou o seu paraíso. Portanto, não se ocupe comigo, pois sigo apenas sendo.

domingo, 14 de setembro de 2008

Vem cá ficar comigo!

A metamorfose
Franz Lafka

Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos.
Que me aconteceu? — pensou. Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar quarto humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as quatro paredes que lhe eram familiares. Por cima da mesa, onde estava deitado, desembrulhada e em completa desordem, uma série de amostras de roupas; Samsa era caixeiro-viajante, estava pendurada a fotografia que recentemente recortara de uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada. Mostrava uma senhora, de chapéu e estola de peles, rigidamente sentada, a estender ao espectador um enorme regalo de peles, onde o antebraço sumia!
Gregório desviou então a vista para a janela e deu com o céu nublado — ouviamse os pingos de chuva a baterem na calha da janela e isso o fez sentir-se bastante melancólico. Não seria melhor dormir um pouco e esquecer todo este delírio? — cogitou. Mas era impossível, estava habituado a dormir para o lado direito e, na presente situação, não podia virar-se. Por mais que se esforçasse por inclinar o corpo para a direita, tornava sempre a rebolar, ficando de costas. Tentou, pelo menos, cem vezes, fechando os olhos, para evitar ver as pernas a debaterem-se, e só desistiu quando começou a sentir no flanco uma ligeira dor entorpecida que nunca antes experimentara.
Oh, meu Deus, pensou, que trabalho tão cansativo escolhi! Viajar, dia sim, dia não. É um trabalho muito mais irritante do que o trabalho do escritório propriamente dito, e ainda por cima há também o desconforto de andar sempre a viajar, preocupado com as ligações dos trens, com a cama e com as refeições irregulares, com conhecimentos casuais, que são sempre novos e nunca se tornam amigos íntimos.


É incrível como esse texto consegue ser tão atual. Muito antes desta moenda, que é o trabalho, o consumo, a modernidade e a solidão, nos colocar o pé no pescoço, Kafka adivinhava o nosso triste porvir, nossa quase completa derrota diante de um mundo que gira mais rápido do que podemos suportar. Enfim, somos isso mesmo, insetos?

metamorfoseações

Metamorfoseação

O livro A metamorfose, de Franz Kafka serviu-nos de inspiração para a construção desse nosso primeiro sarau. Algumas reflexões nos levaram a compreender que o ser humano é mesmo uma metamorfose ambulante. Corpos se transformam em meses, dias, poucos minutos. Uns afinam e se afinam com a moda, outros comprimem-se em músculos tensos, incham, torcem e distorcem as fibras, as carnes, os ossos. Surgem pessoas-montanhas, mulheres-cavernas, homens-baobás, jovens-caniços, meninas-borboletas, velhos-pernilongos. Criaturas que desfilam por aí, trombam-se como formigas.
Mas não só corpo se transforma, também a mente, a alma, o espírito, a energia, enfim, nossas entranhas, nossos medos e emoções. A raiva de ontem? já foi esquecida, assim também o encantamento. A energia que emana de mim para o outro depende de vários fatores e pode chegar quase falida ou em ebulição. A alma (imutável?) também se muda quando tudo fora pára de mudar, abandona a casca e alcança o sublime, onde quer que esteja e seja com que nome for, se for.
Por fim, mesmo que alguém possa dizer: “Não mudei nada, estou como era antes!” Lá do lado de fora, a árvore cresceu, o pai arrumou emprego, a cantora careca saiu da cadeia, pregaram os botões naquela camisa e fizeram uma ponte por cima do rio em que um dia você se banhou.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Metamorfose




O primeiro sarau Eleituras foi muito bacana, mais de 50 pessoas estiveram presentes no dia 06 de setembro, sábado e puderam ler, interpretar, cantar, dançar e ikebanar.